A alimentação é um complexo processo que inclui a interação entre diversos sistemas do nosso corpo, tais como: sistema nervoso (central e periférico), mecanismos da região oral e faríngea, suporte do sistema cardiocirculatório, respiratório e gastrointestinal, assim como os músculos envolvidos em todo esse trajeto.
E, além da fisiologia envolvida na alimentação, existem ainda os aspectos ambientais, psicológicos e sociais que têm importante interferência no processo, podendo ajudar ou atrapalhar. Quando algum desses fatores têm prejuízo de funcionamento, inicia-se a dificuldade alimentar pediátrica (DAP), a qual é definida como ingestão oral prejudicada que não é apropriada para a idade e está associado a medicamentos, nutrição, habilidade de alimentação e / ou disfunção psicossocial.
A ideia desse artigo é explorar todas essas “peças” que devem estar funcionando para a criança conseguir ter uma alimentação adequada e que você possa identificar rapidamente a que não estiver para procurar ajuda.
Fatores neurológicos
Existe um controle da fome e saciedade no nosso cérebro (hipotálamo), portanto, doenças ou lesões nesses locais podem afetar esse controle, assim como alguns medicamentos/drogas que interfiram na sua ação. As drogas adrenérgicas (anfetaminas e serotominérgicas) promovem saciedade, já os antagonistas de norepinefrina ou serotonina, induzem à fome.
Transtornos do neurodesenvolvimento, como o transtorno do espectro do autista estão associados a DAP. Assim como eventos estressores relacionados a alimentação (uso de dispositivo alimentar, internação prolongada, etc) no momento de aprendizagem das habilidades sensoriomotoras para alimentar podem interferir nesse processo gerando a DAP.
Outros exemplos:
• Desordens neurológicas de controle motor com hiper ou hipotonia
• Paralisia cerebral
• Distrofias musculares
• Transtorno de hiperatividade/défict de atenção
Fatores bucofaríngeos
A integridade, ou seja, ausência de lesão na região oral, nasal, faríngea e laríngea é imprescindível para que haja condição da criança sentir aspecto, odor e sabor dos alimentos, assim como mastigar e deglutir o alimento sem risco de aspiração para as vias aéreas. Alguns exemplos de condições que acometem essa região e podem atrapalhar a alimentação:
• Macroglossia (lingua desproporcionalmente grande)
• Fissura labial ou palatina
• Atresia de coana
• Laringomalácia
• Estenose glótica
• Lesão de pregas vocais
Fatores respiratórios
Doenças das vias aéreas superiores e/ou inferiores que cursam com dificuldade respiratória e frequência respiratória aumentada atrapalham a coordenação de deglutição e respiração, levando a dificuldade alimentar. Exemplo disso são crianças que tem displasia broncopulmonar, prematuros com dificuldade respiratória, etc.
Fatores cardiovasculares
Crianças com problemas cardíacos tem dificuldade na alimentação por vários motivos em conjunto como: hospitalização precoce (o que pode resultar em atraso no ganho das habilidades de deglutição), lesão em nervo laríngeo pós cirúrgica, hipóxia crônica, lesão de nervo vago pós cirúrgica, as principais formas de doença cardíaca relacionadas a DAP são:
• Qualquer forma de cardiopatia que necessitem de cirurgia que exija estágio em circulação univentricular (ex: sindrome da hipoplasia do coração esquerdo)
• Cardiopatias associadas com hipertensão pulmonar.
• Miocardites e outras causas de insuficiência cardíaca.
Fatores gastrointestinais
A integridade do aparelho digestivo também é essencial, assim como seu funcionamento adequado. Lesões inflamatórias como esofagite eosinofílica, esofagite péptica, úlcera gástrica ou duodenal, podem levar a dor na hora de se alimentar. Já distúrbios de motilidade como acalásia de esôfago, pós operatório de atresia esofágica, podem levar a criança a ter engasgos e vômitos de repetição, por dificuldade na propulsão adequada dos alimentos por esse tubo. A gastroparesia também é um distúrbio de motilidade comum em crianças com problemas neurológicos, estados de baixa oxigenação (cardiopatias, estados críticos de saúde) e pode induzir o que chamamos de saciedade precoce, prejudicando a tolerância da criança a volumes maiores de alimentação.
Fatores ambientais
A alimentação vai além do processo fisiológico com o objetivo de nutrição do corpo, ela é também um ato social. Portanto, as experiências da alimentação vão envolver desde qual a postura do cuidador que alimenta a criança, a forma que a criança esta sendo alimentada, pessoas envolvidas nesse ambiente, a apresentação do alimento em si e uso ou não de dispositivos (sondas) e distrações (telas). Por exemplo, experiências de alimentação alteradas devido a doença, lesão ou atraso de desenvolvimento podem levar ao comprometimento das habilidades de alimentação.
Sinais de alarme para avaliação médica:
- Necessidade de modificação de textura de líquido ou alimento
- Uso de posição ou equipamento de alimentação modificado
- Uso de estratégias de alimentação modificadas
- Dificuldade em ganhar peso
- Doença cardio ou respiratória
- Doença neurológica e/ou atraso do desenvolvimento
- Comportamento de recusa alimentar > 30 dias
- Refeições demoradas (>30 minutos) e estressantes
- Necessidade de uso de distração (telas) para conseguir alimentar
- Aparente dor ao se alimentar
- Aspiração e/ou engasgo ao se alimentar
- Vômito e/ou diarreia
- Dieta extremamente restrita de variedade (pode levar a deficiência micronutricional)
Caso seu filho apresente uma dificuldade alimentar com algum sinal de alarme presente agende sua avaliação médica o quanto antes para que o problema seja revertido o mais precoce possível evitando prejuízo nutricional e de desenvolvimento a longo prazo.
Abraço,
Jéssica Figueiredo Dantas
Pediatria, Gastroenterologia e Hepatologia Infantil.
CRM 185972
Saiba mais:
Benny Kerzner, BSc et al. A Practical Approach to Classifying and Managing Feeding Difficulties. PEDIATRICS Volume 135, number 2, February 2015. https://pediatrics.aappublications.org/
Praveen S. Goday et al. Pediatric Feeding Disorder—Consensus Definition and Conceptual Framework. JPGN, Volume 68, Number 1, January 2019.
https://www.drjessicadantas.com/post/meu-filho-não-quer-comer